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Projeto investiga impactos das enchentes no RS sobre o boto-de-Lahille e outras espécies ameaçadas

As enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024 deixaram um rastro de destruição nas cidades e no campo. 

03/10/2025 - 14:29 | 03/10/2025 - 14:50
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Projeto Botos da Lagoa dos Patos

Milhares de famílias perderam suas casas, a infraestrutura urbana foi fortemente afetada e os prejuízos econômicos ultrapassaram bilhões de reais. Mas, além dos impactos humanos e materiais, um outro drama silencioso também preocupa cientistas e ambientalistas: os efeitos desse desastre climático sobre a biodiversidade do estado, em especial sobre espécies ameaçadas que dependem dos ecossistemas costeiros e estuarinos para sobreviver.

Entre elas está o boto-de-Lahille (Tursiops gephyreus), um golfinho costeiro encontrado apenas no sul do Brasil, Uruguai e Argentina, que figura entre os cetáceos mais ameaçados do Atlântico Sul. Essa população isolada conta com menos de 600 indivíduos em toda a sua área de ocorrência e enfrenta há décadas pressões como poluição, degradação de habitat e captura acidental em redes de pesca. Agora, soma-se a essa lista de ameaças um fator novo e cada vez mais frequente: os eventos climáticos extremos.

Espécie sob pressão: saúde em foco

Estudos recentes apontam que a população de botos que vive no estuário da Lagoa dos Patos e adjacências apresenta sinais de problemas de saúde, como aceleração de sua idade biológica e possíveis comprometimentos imunológicos. Essas condições podem estar associadas a alterações ambientais, a carga de contaminantes orgânicos acumulados e até ao estresse gerado por mudanças súbitas em seu habitat.

“A saúde do boto-de-Lahille já é motivo de grande preocupação. As enchentes podem ter agravado esse quadro, descarregando poluentes das cidades e re-mobilizando poluentes depositados no solo, aumentando a turbidez da água e alterando a disponibilidade de presas”, explica o biólogo Pedro Fruet, pesquisador da Kaosa.

O paralelo com outros desastres ambientais é inevitável. Após o rompimento da barragem de Mariana, em 2015, pesquisadores identificaram impactos duradouros sobre a fauna aquática, incluindo golfinhos da região costeira de Espírito Santo, que apresentaram alterações nos padrões de uso de habitat e potenciais efeitos tóxicos ligados ao desastre. Agora, os cientistas temem que algo semelhante possa estar ocorrendo no litoral gaúcho.

Ciência em campo para entender os efeitos das enchentes

Com o objetivo de avaliar esses impactos, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por meio do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos (CMA), lançou em 2025 o estudo “Avaliação dos Efeitos do Desastre Natural decorrente das Mudanças Climáticas na Biodiversidade do RS”, que vai até 2027.

A iniciativa reúne uma ampla rede de instituições parceiras: a Kaosa, o Museu Oceanográfico da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), o Laboratório de Ecologia e Conservação da Megafauna Marinha (ECOMEGA/FURG), o Centro de Recuperação de Animais Marinhos (CRAM/FURG), o Projeto Botos da Lagoa dos Patos, o Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores “Izabel Gurgel” (MAQUA-UERJ)  e o Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental (NEMA). O projeto também conta com apoio da Facto.

“Eventos como as enchentes de 2024 escancaram a urgência de compreendermos como as mudanças climáticas afetam não apenas as pessoas, mas também os ecossistemas e as espécies que neles vivem”, afirma Fruet.

Três linhas de ação

O trabalho de campo ocorre principalmente no município do Rio Grande e entorno da Lagoa dos Patos, região crítica para a conservação do boto-de-Lahille e de outras espécies ameaçadas, como a toninha (Pontoporia blainvillei) e o leão-marinho-sul-americano (Otaria flavescens).

As atividades são divididas em três frentes:

  • Monitoramento da saúde e distribuição: embarcações percorrem regularmente o estuário e a costa adjacente para observar os botos, registrar sua distribuição e coletar amostras de pele e gordura. Esses materiais permitem análises sobre níveis de contaminantes orgânicos e metais pesados, comparando dados de antes e depois da enchente.
  • Monitoramento da mortalidade: equipes percorrem a faixa de praia para registrar encalhes de animais marinhos e coletar amostras de carcaças. Cada caso ajuda a entender possíveis causas de morte relacionadas ao evento climático e às suas consequências ambientais.
  • Dinâmica pesqueira: a equipe também investiga como a enchente alterou a rotina da pesca artesanal e semi-industrial. Mudanças no esforço e nas áreas de pesca podem aumentar os riscos de interação e captura acidental de golfinhos e toninhas.

O papel do Projeto Gephyreus

O projeto Gephyreus, que articula esforços de conservação do boto-de-Lahille ao longo de toda sua distribuição, é uma das protagonistas dessa investigação. Parte de sua equipe, que tem base em Rio Grande, realiza duas saídas mensais de monitoramento embarcado, conduzidas pelos membros do histórico Projeto Botos da Lagoa dos Patos – uma das iniciativas de pesquisa em cetáceos mais antigas do Brasil, com mais de 50 anos de atuação. A população estudada em detalhe desde 1974 fornece uma oprtunidade ímpar para o monitoramento dos botos-de-Lahille a  longo-prazo, o que permite avaliar com maior confiabilidade e controle os impactos causados pelas ações humanas sobre a espécie.

Biodiversidade, comunidades e futuro

As enchentes também afetaram comunidades pesqueiras que convivem com os botos no dia a dia. Alterações na disponibilidade de peixes, deslocamentos de cardumes e danos à infraestrutura pesqueira mudaram práticas tradicionais, impactando tanto a subsistência de famílias quanto a relação entre humanos e mamíferos aquáticos. Para os pesquisadores, isso mostra que a emergência climática é um problema socioambiental, que conecta diretamente a saúde dos ecossistemas à qualidade de vida das pessoas. Os resultados do estudo alimentarão a base de dados do ICMBio e servirão como subsídio para políticas públicas de conservação que considerem o avanço dos eventos climáticos extremos. A expectativa é que, até 2027, seja possível traçar um panorama sólido sobre como enchentes e outros desastres naturais afetam espécies ameaçadas no sul do Brasil – e, a partir daí, criar estratégias mais eficazes para protegê-las.

O projeto pretende não apenas produzir conhecimento científico, mas também lançar luz sobre a urgência de preparar o estado e o país para um futuro em que enchentes, secas e ondas de calor serão cada vez mais frequentes. E, nesse cenário, a sobrevivência do boto-de-Lahille pode ser um dos termômetros mais claros da saúde dos ecossistemas costeiros e estuarinos do sul do Brasil.

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